Houve um momento particular, na noite de 18 de Julho de 2010, em que a arte de Ana Moura alcançou um patamar singular, relevante no panorama global porque é essa a sua real dimensão: chamada por Prince para um encore mágico na sua apresentação no festival SBSR, a cantora, com a sua presença e com toda a sabedoria já contida na sua garganta, silenciou até às lágrimas uma plateia de dezenas de milhares de pessoas. A sua voz entregou-se a “Walk in Sand” e ao fado tradicional “Vou Dar de Beber à Dor”, mas, na verdade, qualquer canção poderia ter resultado no mesmo arrebatamento colectivo que ali sucedeu. É que Ana Moura provou ter aí algo de tão singular quanto universal: uma capacidade de interpretação que ultrapassa códigos de género, que se sobrepõe a línguas, que parece prenunciar uma nova cultura. Um futuro que há muito se aguarda.
Quando subiu ao palco com Prince, Ana já tinha uma bagagem, uma carreira, e uma vida inteira de imersão nessa força – a da música -- que sempre a puxou. A sua relação com a música começou antes de ter entrado num estúdio: talvez no momento em que, ainda no útero, ouviu a sua mãe cantar fados, mas também sentiu os sons que se desprendiam do gira-discos lá de casa que tocava os discos de Fausto e Ruy Mingas, de José Afonso ou Bonga.
Com raízes familiares em África, talvez haja até algum eco distante, carregado pela sua herança genética, que ainda antes desse momento já a empurrasse para o que é hoje. Mas houve um percurso, pois claro: começou por aprender com a voz dos pais, que cantavam sempre que podiam, e ainda menina, ao mesmo tempo que aprendia a ler, já cantava fados com o mesmo empenho e inocência com que dançava sembas ou kizombas.
A adolescência levou-a para mais perto de Lisboa, para Carcavelos, onde se matriculou no liceu e na Academia dos Amadores de Música, experimentando usar a sua voz noutros contextos, talvez não condizentes com o seu âmago, mas certamente mais em sintonia com o que outros rapazes e raparigas da sua idade então escutavam e tocavam e cantavam ou dançavam. Ainda assim, um “Povo que Lavas no Rio” que começou por ser de Amália, mas haveria de ser também reclamado por António Variações, também merecia a sua atenção, encaixado entre as versões dos êxitos que se esperaria ouvir reinterpretados por jovens de 15 ou 16 anos.
Ao aprendizado familiar, fundo e variado, e à experiência escolar e académica, diferente, mas também importante, Ana não demoraria a somar outro caminho que se revelaria importante para a sua formação artística: num bar em Carcavelos, numa noite de cantorias, arrisca um fado sem saber que está presente o guitarrista António Parreira que imediatamente lhe reconhece a força indómita e a originalidade da postura. Começa aí o seu percurso pelas casas de fados que culmina com Maria da Fé a render-se e a convidá-la para se apresentar regularmente na sua casa, o mítico Senhor Vinho.
Pode dizer-se que a partir daí os dados estavam lançados: Miguel Esteves Cardoso, prestigiado jornalista que nunca escondeu uma desmedida paixão por Amália Rodrigues, reconheceu em Ana o mesmo fulgor e dedicou-lhe inflamadas palavras que tiveram efeitos imediatos, trazendo-lhe a atenção de editoras. A Universal propôs-lhe ingresso no seu catálogo e a primeira manifestação dessa frutífera aliança foi Guarda-me A Vida na Mão, com Jorge Fernando, outro “amaliano” de gema, a assumir a produção e a assinatura de boa parte dos temas.
Seria lícito escrever-se que o resto é história. Com uma visão já muito mais vasta do que a que o fado por si só poderia conter, Ana Moura acercou-se do flamenco e das tradições ciganas trazendo para a sua beira Pedro Jóia e os Ciganos d’Ouro e vincou claramente que não lhe interessava o dogma nem as ideias guardadas em redomas. Que há um mundo que pode ser novo se alguém tiver coragem para o inventar.
À estreia sucederam os álbuns Aconteceu e Para Além da Saudade, que lhe permitiram somar sucesso em cima de sucesso e expandir o mapa das suas apresentações, ganhando mundo para a sua voz. Das melhores casas de fados de Lisboa transitou para o Carnegie Hall em Nova Iorque e daí para o Rolling Stones Project, aventura liderada pelo saxofonista da mítica banda britânica, Tim Ries, que cruzava o cancioneiro eternizado na voz de Mick Jagger com intérpretes seleccionados de várias partes do mundo. Como Ana Moura, que a esse projecto ofereceu as suas versões de “Brown Sugar” e “No Expectations”.
Dizer que os próprios Stones se renderam é pouco: numa passagem do grupo de “Satisfaction” pelo Estádio Alvalade XXI sobe ao palco e interpreta, com Jagger e companhia, “No Expectations” superando, obviamente, as expectativas de toda a gente. Logo aí ficou o sinal de que Ana estava numa divisão à parte. Tão à parte, aliás, que nesse álbum, além de um tema composto especialmente para si por Tim Ries, “Velho Anjo”, figurava ainda uma rara colaboração de uma daquelas vozes que escutava em casa em criança, Fausto, que lhe ofereceu “E Viemos Nascidos do Mar”. Outras contribuições chegaram de Amélia Muge, que escreveu “O Fado da Procura”, ou do espanhol Patxi Andion, que com ela cantou “Vaga, no azul amplo solta”. E, claro, desse trabalho consta também “Os Búzios” de Jorge Fernando, um dos primeiros grandes sucessos da artista que não tardaria a ter aos seus pés o Coliseu dos Recreios e a arrecadar o prestigiado Prémio Amália Rodrigues.
Semanas e semanas e semanas no topo das tabelas de vendas traduziram uma empatia muito especial com o público que nela encontrou um claro símbolo. E depois veio o álbum Leva-me aos Fados, em que contava uma vez mais com peças escritas por Jorge Fernando ou Amélia Muge, mas também José Mário Branco, um disco que repetiu e até ampliou o sucesso. O mundo continuava então a ir ter com Ana Moura: Prince voou propositadamente para Paris para a ouvir e conhecer e desse encontro resultou o tal momento especial de 2010.
Esta última década foi passada a correr, a voar, sempre mais longe e mais alto, transformando-se como artista, assumindo as diferentes peles e culturas que nela sempre correram. Pouco depois desse encontro com Prince houve outro, no Rio de Janeiro, com Gilberto Gil, com quem deu voz ao “Fado Tropical” de Chico Buarque. Fado tropical: talvez um bom rótulo para aquilo que a sua voz contém -- uma alma atlântica, maior do que as fronteiras que a viram nascer, certamente.
E talvez Desfado, o seu massivo e global sucesso de 2012, contenha no título outro bom rótulo, afirmando-a como alguém que, sendo capaz de desmontar uma linguagem é igualmente capaz de inventar algo de absolutamente novo. Que este disco se mantenha nos Tops nacionais de vendas quase ininterruptamente desde que foi lançado é um sinal claro de que continua a não haver nada assim, com tamanho vigor e força, algo que só a originalidade profunda consegue conjurar.
Em 2016 Ana lançou Moura, continuou a cruzar mundo, encheu as mais prestigiadas salas globais, cruzou-se com gigantes, somando às suas experiências com Prince, Rolling Stones ou Gilberto Gil, encontros com Caetano Veloso ou Herbie Hancock. Do fado ao funk e à soul, do flamenco ao rock e ao jazz, do samba ao futuro, não parece haver nada que Ana não incorpore de forma natural.
Em 2016, em Nova Iorque, uma vez mais no Carnegie Hall, Ana cantou o tema angolano “Birin Birin” dedicando-o à memória de Prince, falecido alguns dias antes desse concerto, numa emocional homenagem que levou o famoso crítico Ben Ratliff a escrever sobre a sua voz, tentando, talvez, desvendar o mistério do seu apelo: “Ela tem um forte e claro alcance de notas nos pontos mais altos da sua voz de contralto, em que se apoia fortemente, com efeitos poderosos”. Esse efeito poderoso de que o crítico tentava extrair a fórmula é, afinal de contas, o resultado de uma pessoa que nunca quis estar presa a uma única ideia. A sua liberdade é o nosso futuro. E isso sentiu-se de forma clara quando, com produção de Branko, participou ao lado de Bonga, outro dos ecos da sua infância, numa antologia de homenagem a Amália, com uma inventiva versão de “Valentim” com nervo suficiente para animar os bailes de um futuro sem fronteiras.
“Ela tem uma presença e uma voz tremendas”, garantia, em 2016, o Guardian, reconhecendo a tal força que se traduz em talento, em coragem e em visão e que tem sido o vector mais importante de uma carreira que nunca parou de crescer em direcção ao futuro.
E foi esse mesmo futuro que se continuou a desvendar na sua colaboração com Conan Osiris e Branko e que se traduziu no extraordinário “Vinte Vinte (Pranto)”, tema que já em 2021 mereceu um simbólico e poderoso vídeo que fechou um ciclo e abriu as portas de um novo futuro.
Agora, com “Andorinhas”, Ana Moura reclama a liberdade de ser artista sem rótulos, sem limites. O tema que fala dessa mesma liberdade que os verdadeiros artistas usam sempre como motor de criatividade, tem África e balanço universal dentro, comove e faz dançar, e é servido, no seu extraordinário vídeo, por uma moderna linguagem visual.
Esse é o primeiro capítulo de um novo “livro” na vida artística de Ana Moura que declarou a sua total emancipação e se comprometeu com a mais importante das entidades presentes ao longo da sua carreira: o seu público, que quer trazer para dentro da sua vida artística adoptando novas ferramentas da idade digital, como os hoje tão debatidos NFTs, para cimentar essa ligação, sem intermediários.
Em 2021, Ana Moura lança o sétimo álbum de uma carreira sem paralelo, olhando para o futuro com a ânsia de quem sabe ter algo novo e diferente para transmitir. O seu lugar é, claramente, o mundo. E o seu som o da pura expressão, sem barreiras ou géneros, porque a liberdade mais genuína não cabe dentro de um só género, não tem apenas uma cadência, faz-se de muitas linguagens e ideias. Ana Moura sabe isso muito bem.
Documento Sintetizado
ANA MOURA: DO FUTURO E DO MUNDO
· Uma voz singular, admirada por Prince, Gilberto Gil, Rolling Stones, Caetano Veloso
· Uma postura magnética em palco em que a imagem e a voz poderosa concorrem para gerar arrebatamento
· Uma inteligência e versatilidade musicais ímpares, que lhe permitem soar tão imponente no fado como no rock, na soul como em balanços com mais África dentro
· Coragem em experimentar trilhar novos caminhos, sempre em busca da inovação
“Andorinhas” é, portanto, uma nova alma que assim se liberta. Porque as “andorinhas é que são rainhas / a voar as linhas da liberdade”, canta ela. No vídeo, rodado em telhados de um popular bairro de Olhão, Ana partilha espaço com quem dança e sente, mostrando-se com nova imagem e postura, com uma linguagem visual que tem tanto de autêntico quanto de universal. Sobre cadência de recorte tropical e com balanço de uma África que é tanto ancestral quanto do futuro, a artista propõe uma nova ideia para nos definir a todos.