Desde a noite de estreia, em 22 de março do ano passado, decidiu-se, quase como um decreto, que o espetáculo “Recanto” teria de ser registrado. Era preciso capturar para sempre aquele momento histórico de Gal Costa – a protagonista, a estrela, a voz. Mas não só por ela. Era necessário que “Recanto” fosse eternizado também pelo que ele significa para Caetano Veloso, diretor do show e compositor solitário do álbum homônimo que o originou, lançado em 2011.
Podemos botar nessa conta o que o espetáculo representa para toda a geração dos três jovens músicos da banda: Pedro Baby (guitarra e violão), Bruno Di Lullo (baixo e violão) e Domenico Lancellotti (bateria e bases eletrônicas). E, acima disso tudo, o que “Recanto” é para a música e a cultura popular brasileira atual.
Pois está feito. Com direção de filmagem de Dora Jobim e Gabriela Gastal, as imagens do DVD “Recanto Gal ao vivo” foram captadas no Theatro Net Rio (RJ), em 8 e 9 de outubro de 2012. A direção de áudio, tanto do DVD quanto do CD duplo, ficou por conta de Moreno Veloso.
No pequeno documentário que integra o DVD, a própria Gal afirma que foi em cena e aos olhos do público que aconteceu plenamente sua intimidade com o repertório do respectivo álbum de estúdio: canções muito sofisticadas de Caetano, quase todas inéditas e compostas especialmente para a voz dela.
De fato, uma coisa extraordinária aconteceu com a cantora naquele dia 22 de março de 2012, quando ela pisou no palco da Miranda (RJ) para fazer a primeiríssima sessão pública do show “Recanto”.
A banda atacou a introdução do clássico “Da maior importância”. E, até ali, o foco de luz só permitia que se visse o rosto de Gal, emoldurado pela escuridão completa do ambiente. A cabeleira grandiosa, armada como a juba de um leão. Os lábios carnudos, vermelhos. Veio a voz.
Aquela não era mais a Gal de ontem, da noite anterior, da semana retrasada. Era uma Gal sem tempo determinado, que fazia conviver o momento presente com nosso passado e futuro – mas sem essa ordem cronológica. Como no delírio ou na memória de todos nós, tempos diferentes eram embaralhados por aquela voz inacreditável, por aquelas canções.
A plateia daquela noite, composta basicamente por artistas de todas as áreas e gerações da cultura brasileira, entrou junta em catarse. Choradeira coletiva. As lágrimas não secaram até hoje, talvez não sequem nunca mais. E que não foi só por saudade de Gal que se chorou. Sim, a maior cantora do Brasil estava de volta. Mas havia mais do que isso. Todos sentiram o impacto da tal “coisa extraordinária”, materializada ali graças a ela, a Caetano, aos meninos músicos, às canções. Sentiram a força desse negócio avassalador que não é tão palpável a ponto de se deixar identificar completamente. E que, também por isso, não acontece com frequência na história do mundo.
Quando é perguntada sobre o que aconteceu, Gal fala em uma “entidade Recanto”. Pode estar usando a palavra “entidade” como se usa no candomblé: para dar nome ao santo que baixa e, nesse caso, leva seu corpo e sua voz a outro lugar, onde a interpretação e o canto são mais intensos, profundos e presentes. E ela já contou que, mesmo quando leva qualquer das músicas desse repertório para outro contexto (num show de voz e violão, por exemplo), elas não soam com essa pegada.
Mas Gal pode estar usando a palavra “entidade” da maneira como ela surge nos dicionários: para denominar aquilo que é essencial, que constitui a existência de uma pessoa. É igualmente adequado, pois foi perseguido o tempo todo, no roteiro, na encenação, no direcionamento dos arranjos, na luz: encontrar todas as personas essenciais de Gal Costa – o que ela já foi, o que ainda será.
Entrevistei os dois – cantora e diretor – no final de 2011, dias antes de “Recanto”, o álbum de estúdio, ser lançado. Ali, já se sabia que o show seria dirigido por ele. Mas havia a dúvida: ou o repertório se concentraria apenas nas canções de Caetano gravadas por Gal desde 1965 (a estreia foi “Sim, foi você”, no primeiro compacto dela), ou seriam pescados outros autores que também compuseram a biografia artística da cantora.
Ficaram com a Gal de todo mundo. Mantendo vivo o conceito do álbum que se lançava, a obra de Caetano predomina no roteiro: são dele 16 das 22 canções apresentadas, misturando novidades a clássicos como “Baby”, “Dom de iludir”, “Divino maravilhoso” (parceria com Gil), “Mãe”, “Minha voz, minha vida”, “O amor” e “Força estranha”. Mas há também Gilberto Gil (“Barato total”), Chico Buarque (“Folhetim”), Jards Macalé e Waly Salomão (“Vapor barato”), Jorge Ben (“Deus é o amor”) e até os radiofônicos Michael Sullivan e Paulo Massadas (“Um dia de domingo”), em que Gal imita o vozeirão de Tim Maia. Todas essas canções já estavam na lista de Caetano no dia daquela entrevista. Ele já sabia. Na estrada, entrou ainda um Dorival Caymmi (“Modinha para Gabriela”).
Toda a história de Gal Costa está resumida nesse trabalho. Não apenas por meio das canções, mas também pela maneira ousada como elas são tratadas. Gal é nossa artista de ponta. Foi assim na vanguarda tropicalista do primeiro álbum solo, em 1969, na fase psicodélica de “Legal” (1970), nas experiências ultramusicais com João Donato em “Cantar” (1975), na fase popular de “Tropical” (1979) e “Fantasia” (1981), nas paradas de sucesso com “Bem bom” (1985), nas experiências de “Plural” (1990) e “O sorriso do gato de Alice” (1993). Tudo isso foi retomado no espetáculo. E é isso tudo que o registro “Recanto Gal ao vivo” busca preservar.
Um dado prático dá ainda mais consistência histórica ao registro. Foi justamente no espaço do Theatro Net Rio (que então se chamava Teatro Tereza Rachel) que Gal Costa encenou, sob a direção de Waly Salomão, o legendário “A todo vapor”, em 1971. Transformado no LP duplo “Fa-Tal” naquele mesmo ano, o espetáculo é um marco não só da obra da cantora, mas das artes cênicas e musicais do nosso país.
Foi para a Gal de “A todo vapor”, aliás, que Waly e Macalé escreveram “Vapor barato”. E a primeira execução pública da canção aconteceu no mesmo teatro em que agora a cantora registrou ao vivo o seu “Recanto”. Tocá-la ali de novo, e numa interpretação tão intensa quanto a de quatro décadas atrás, criou um refinado jogo de espelhos entre passado e presente. A quem se interessar por isso, recomendo que corra ao documentário, nos extras do DVD, e espere o solo de Pedro Baby em “Vapor barato”. A imagem flagra a expressão de Gal, chorando, enquanto Baby toca a guitarra. Entra facilmente na galeria de tomadas mais expressivas e comoventes da história da música brasileira.
Em algumas cenas de “Recanto Gal ao vivo”, pode-se ver uma moça, no alto da plateia, segurando seu exemplar de “Fa-Tal”. Ali, ela nos ajuda – junto com Gal, Caetano, os meninos músicos e as canções – a construir a ponte que nos leva a esse tempo sem tempo, a essa mistura de invenção e memória, de conforto e inquietação. A todo vapor.
Marcus Preto
março de 2013