fãs 3946
Um “Casulo” e o mundo lá fora
A Márcia chegou-me como costumam chegar as coisas boas. Pela mão dos amigos. Chegou-me pelo João Monge, que partilhou ‘A pele que há em mim’ no Facebook. E bastou-me ouvir uma vez para que ficasse de gigante nos meus ouvidos.
Algum tempo depois, convidei-a para o “Bairro Alto”, na RTP2. Ela disse que sim, que aceitava, e combinámos um primeiro encontro num hotel perto do cinema King. Foi a 3 de Janeiro de 2012. Conversámos sobre o seu percurso, sobre música, sobre as vidas e pagámos um balúrdio por dois cafés.
A gravação do programa foi ainda nessa semana, no dia 6. E pela primeira vez estiveram mais do que duas pessoas naqueles sofás. Eu, a Márcia e a sua filha. Ainda dentro dela, é certo, mas já tão grande que era fácil perceber que faltava muito pouco para reclamar o seu direito ao mundo. Muito pouco para sair desse casulo amniótico onde aprendemos a amar as mães.
“Casulo” é o nome deste disco, o primeiro que Márcia edita depois da maternidade. Antes tinha lançado dois. A estreia deu-se em 2009. Era um EP com cinco temas e chamava-se apenas “Márcia”. O segundo, “Dá”, saiu em 2010 e foi reeditado em 2011. Foi com essa reedição em mente que surgiu o desafio a JP Simões para estender a letra de ‘A pele que há em mim’ – que já estava gravado no EP – e fazerem uma gravação a dois. Contoume a Márcia, durante a entrevista, que este tema foi escrito na Avenida de Roma, em Lisboa. Tinha ido ver uma exposição de artes plásticas ao Júlio de Matos e no caminho de regresso a casa, um percurso de mais ou menos 20 minutos, desenhou a melodia. Muitas vezes as canções também lhe saem nos transportes públicos ou na praia. Pouca coisa mudou por cá, desde a nossa primeira conversa naquele dia de Janeiro até agora que oiço este novo álbum. Continuamos às voltas com a austeridade, a tentar encolher o défice e a fazer olhinhos de aluno graxista aos mercados. Continuamos a tropeçar em passos pouco seguros, alguns deles até inconstitucionais. O último ano não foi fácil. A Europa anda avariada da cabeça, quase a cair da tripeça, e respira-se um ar de colapso do sistema. As pessoas vivem com medo e de olhos postos no chão. Talvez por isso Márcia se tenha refugiado na música, vendo nela um escudo protector, e tenha criado uma realidade alternativa com as canções deste disco. Em boa hora teceu este “Casulo”, onde nos podemos fechar e deixar o mundo aos gritos lá fora.
Mas nessa realidade cabem ainda e sempre os amigos. Márcia gosta de fazer esse sublinhado. E os amigos, além de serem para as ocasiões, são também para a música. Daí que não seja de estranhar a voz de Samuel Úria no tema ‘Menina’. Os amigos também servem para dizer olá nos discos uns dos outros. Foi o que ele fez. Da mesma forma que, há mais tempo, a voz de Márcia também já tinha cumprimentado a de B Fachada em algumas canções; e que ela nos disse ‘Até ao Verão’, no tema que escreveu para o “Desfado” de Ana Moura.
Márcia nasceu em Lisboa, a 19 de Fevereiro de 1982. Coincidências dos mercados, também nessa altura os tempos não iam famosos e o Fundo Monetário Internacional andava por cá. Foi precisamente nesse ano que José Mário Branco se revoltou com o “FMI”.
Com a entrada na CEE a vida tornou-se mais fácil e foi durante a esperança
demasiado ilusória da década de 90 que Márcia, aos 12 anos, começou a meter as mãos na música. Às escondidas, punha-se a tocar e a experimentar sons na guitarra de 12 cordas do irmão. Tocava baixinho para que não a ouvissem. Encostava o ouvido à madeira e os dramas da adolescência perdiam vigor. A ressonância da guitarra acalmava-a.
Quando tinha 18 anos deu o passo seguinte. O namorado de uma amiga tinha uma banda que precisava de uma vocalista. Ela, na audição, cantou temas de Tracy Chapman e convenceu os restantes membros. Não tardou muito até que começasse também a compor, obrigando a que a banda fosse rebaptizada para Ana’s Blame. Nessa altura ainda escrevia e cantava em inglês. Apesar desta relação com a música, desde muito cedo que Márcia se refugiava nos desenhos que fazia. Alimentava o sonho de ser pintora e, na escolha da faculdade, optou por Belas-Artes. Mais tarde, nas voltas do curso, viu-se em Angers, em França, para um semestre no programa Erasmus. A distância revelou-se determinante no que estava para vir. Quando estamos longe de casa sentimos a falta do aconchego da língua e há emoções que só sabemos dizer em português. Márcia sentiu isso e o inglês deixou de ter lugar nos versos que ia rabiscando.
Regressada de França e já com os estudos arrumados, rumou até Barcelona
para um estágio em cinema documental. Ficara-lhe essa vontade desde que
fizera um documentário sobre a sua irmã para uma cadeira na faculdade.
Mas a metragem da aventura foi curta. Márcia desiludiu-se com o mundo das produtoras e a música agarrou-a de vez. Talvez não tivessem sido precisas tantas voltas. Afinal já era a ressonância da guitarra que lhe acalmava os tumultos da alma durante a adolescência. Mas às vezes é preciso saber esperar. Às vezes é preciso ir lá longe para conseguir ver melhor ao perto e preencher de vida o silêncio de uma canção que ainda não está escrita.
A Márcia chegou-me como chegam as coisas boas. Pela mão dos amigos. E
de gigante continua neste “Casulo”.
José Fialho Gouveia